domingo, 31 de outubro de 2010

Entre o céu e a terra (Carta ao padre Ivo)

Querido padre Ivo,
Não te pergunto como estás porque sei que nunca estiveste tão bem. Não te digo onde estou porque também já sabes.
Antes de continuar, deixa-me explicar aos meus amigos, que lerão estas linhas, quem tu és.
O P. Ivo foi e continua a ser um missionário comboniano. Nasceu e morreu em Viseu. Preparou-se para ser missionário em Portugal, Espanha e na Itália e foi ordenado em 1977. Como missionário trabalhou 16 anos em Portugal e outros tanto na Etiópia. Partiu para o céu em 2009, levado por um cancro ao estômago. Tinha 57 anos.
Agora que já te conhecem, deixa-me dizer só mais uma coisa.
Quando, no fim das férias, passei por Coimbra, vi o teu livro. Agarrei-o com emoção e meti-o na bolsa, dizendo que seria a minha leitura durante a longa viagem de regresso á África que tanto amaste.
De facto comecei a lê-lo quando se sentei no avião, em Lisboa e acabei de o ler, agora mesmo.
Então, querido Ivo, sabes onde estou neste momento, não sabes? Estou dentro do avião, no céu africano, a caminho de Kisangani, no Congo. Aqui, a 10.000 metros da terra, tive vontade de falar contigo, e escrevo-te estas linhas.
Querido amigo, é difícil descrever os sentimentos que suscitaram em mim a leitura deste livro que é, na realidade, o teu jornal íntimo.
Durante a leitura, fiz pausas demoradas para meditar, recordar os dois anos que passamos juntos, em Santarém, ou simplesmente para te admirar e ficar contigo. Não te escondo que muitas vezes tive que parar para limpar os olhos húmidos de emoção
E´ uma sensação única pensar neste nosso encontro – tu estas no céu e eu, aqui dentro do avião, entre o céu e a terra.
Admirei, desde o nosso primeiro encontro, a força tua vocação missionária e comboniano. Eras um especialista na história do instituto e conhecias como poucos a vida e a história do nosso fundador, S. Daniel Comboni.
Deixei-me contagiar pela tua paixão pela Palavra de Deus. Tinhas o dom raro de explicar e tornar actual aquela Palavra de Vida.
O que eu não conhecia de ti era essa ânsia de santidade, a tua obsessão por fazer a Vontade de Deus e a tua pressa de partir para junto do Pai.
Agora que já chegaste onde querias, lembra-te de nós, os teus colegas missionários. Tu estás no céu, nós cá na terra. Tu já chegaste, nos ainda estamos a caminho.
Junto com S. Daniel Comboni intercede sobretudo pela “tua terra, a África.”
Reza também pelos teus irmãos europeus, para que elevem os olhos para o alto e vivam com os pés assentes na terra, mas com o coração no céu, a nossa terra definitiva.
Quando estavas connosco vivias das coisas do alto, agora que estás no céu, lembra-te dos que ainda vivem mergulhados nesta terra.
Nós não somos da terra, mas ainda não chegamos ao céu. A nossa vocação é viver entre o céu e a terra, até ao dia que chegarmos onde te encontras.
Então até quando Deus quiser.
Da um abraço ao padre José Augusto, teu irmão e missionário como tu, que partiu aos 41, ceifado pela mesma doença.
Adeus, querido Ivo, até quando Deus quiser.
Fidelino
No avião, no espaço aéreo africano, 28 de Setembro de 2010.
P.S. Se quiser ler o livro do P. Ivo, pode pedi-lo `a “Além-mar”.
P. Ivo Martins do Vale, A Missão que sempre sonhei, Além-mar, 2010.