domingo, 12 de dezembro de 2010

A primeira viagem

Estou em viagem para a mina nova missão. Deixei definitivamente Yanonge, amanhã parto para Maboma. Neste momento encontro-me na cidade de Isiro, a capital da sub-região do Alto Uele. Esta cidade foi, durante muitos anos, a sede da presença comboniana no Congo. Este era o ponto de passagem obrigatório para as partidas e as chegadas, encontros e abastecimentos das missões.
Cheguei aqui, pela primeira vez, em Outubro de1993 quando ia a caminho da minha primeira missão. Cada vez que passo por aqui lembro-me daquela viagem. Voltemos, portanto, 17 anos atrás.
Saímos de Isiro às 5.00 horas da manhã com destino a Dakwa. Seria uma viagem de 12 horas para percorrer 300 km.  Pelo caminho parámos numa missão dos missionários alemães. Deixamos o correio e algumas encomendas, comemos e continuamos viagem.
Seguiram-se horas de viagem monótona no meio de uma paisagem imutável. Percorríamos dezenas de quilómetros na floresta, chegávamos a uma aldeia toda feita de palhotas. Saímos da aldeia e entravamos na floresta e assim até chegarmos a um grande rio, o rio Uele, um dos maiores afluentes do rio Congo. Atravessámos num barco próprio para isso. Do outro lado começava o território da paróquia. Faltavam apenas 70 km para chegarmos ao nosso destino.
A viagem que tinha começado como uma aventura tornava-se, aos poucos num pesadelo. Aquele último troço de estrada foi penível. Havia muitos buracos, as ervas tapavam quase por completo a estrada e chovia. Dentro de mim fez-se escuro.
Primeiro fui invadido por um sentimento de revolta contra as autoridades do país que deixavam uma estrada degradar-se daquela maneira. Dizia isso mesmo a dois jovens congoleses que viajavam connosco. Eles riram-se e diziam que eu habituar-me-ia. Explodi dizendo que não se podia habituar às coisas más.
Entretanto o jipe afundava-se cada vez mais numa floresta sem fim. Fora eu só via ervas molhada contra o pára-brisas, a chuva que fustigava o carro sem piedade, dentro de mim sentia o desespero e a angústia. A travessia daquele enorme rio tinha cortado a última ligação com o mundo. Era como se fosse conduzido ao desterro, sem possibilidade de voltar para trás.
Pensava nos longos anos de formação, nas bonitas histórias que tinha ouvido de tantos missionários, do desejo sincero de partir “para a Missão”. Dizia-me que, naquele momento, estava justamente na Missão. Mas não conseguia controlar-me, Não, não era aquela a missão com que eu tinha sonhado. Se ao menos me tivessem deixado na cidade. Mas nunca ali, perdido no meio do mato, naquela terra de ninguém. Só queria fugir, voltar para trás o mais cedo possível. Mas como?
Quando finalmente chegamos, extremamente cansado da longa viagem numa estrada esburacada, doía-me todo o corpo, estava fisicamente esgotado e interiormente destruído.
À nossa espera estava um velho missionário, alto, magro e com uma enorme barba branca. Do seu rosto gasto por 50 anos de missão, resplandecia uma grande alegria e paz interior.
Não quis acreditar no que via! Eu estava desesperado, à beira de um ataque de choro, e ele feliz! Seria ainda uma pessoa normal?!  Donde lhe vinha aquela serenidade? Ele deve ter adivinhado o meu estado, veio ter comigo, deu-me um grande e forte abraço forte enquanto repetia: “Bem-vindo à Missão!”.
Em seguida, vieram cumprimentar-me dois jovens seminaristas Combonianos que estavam em estágio. Também eles estavam sorridentes e felizes. Deram-me as boas vindas e mostram-me o quarto. Era um quarto pequeno, o chão de cimento sujo, as paredes nuas. A cama velha, mas bem arranjada. Havia uma pequena mesa e uma cadeira feitas à pressa. Sobre a mesa havia um bonito vaso com um lindíssimo ramo de flores com a escrita “Bem-Vindo!”
Estava confuso e completamente baralhado. Comecei a duvidar dos meus sentimentos. E se eles tivessem razão? Aquele velho missionário e aqueles rapazes não imaginam quanto as suas calorosas “Boas-vindas” mexerem comigo. Afinal aquela era a minha nova casa, aqueles eram a minha nova família, meu pai, e meus irmãos.
Logo de seguida, fomos ver as irmãs missionárias Combonianas que viviam ao lado. Elas tinham ouvido o carro e esperavam-nos de pé, à entrada da casa. Eram três irmãs de idade avançada. Fixei-as atentamente para descobrir os seus sentimentos. Deparei-me com rostos cansados e marcados pelos anos, pelo clima e malárias tropicais, mas que resplandeciam de felicidade e paz interior. Não me deixaram tempo para mais reflexões, vieram ao meu encontro e cobriram-me de abraços, beijos de “muito boas vindas”.
Eu estava completamente rendido. Primeiro tinha encontrado um pai e irmãos, aquelas ali, eram as minhas mães. Mais tarde voltaria de férias uma jovem irmã mexicana, era a minha irmã. A minha nova família estava completa: pai, mães, irmãos e irmãs!
No dia seguinte fui apresentado aos cristãos, na missa da manhã. Mais sinais de acolhimento, de carinho de boas vindas da parte dos cristãos. Eram os outros membros da grande família.  
Depressa descobri que aquela missão não era um degredo, mas um paraíso para o missionário. Não era um pesadelo, mas um sonho tornado realidade. Dakwa tinha sido o meu baptismo de missionário e tornou-se rapidamente no meu primeiro e grande amor que se tornou numa paixão.

Isiro (RD Congo), 25 de Outubro de 2010

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Adeus à Yanonge


   Encontro-me actualmente em Yanonge, mas estou de partida. Vim cá para levara as minhas coisas, introduzir o colega que vem ocupar o meu lugar e despedir-me das pessoas. A coisa mais difícil para um missionário é dizer adeus às pessoas onde trabalhou. Antes de partir gostaria de falar um pouco desta aldeia que já foi um grande centro.
  Yanonge é uma grande localidade a 70 km da grande cidade de Kisangani, na Província Oriental da República Democrática do Congo. Este foi, desde os tempos idos, um centro de troca onde se encontravam os agricultores e os comerciantes. A proximidade do grande centro, a cidade de Kisangani, facilitava o escoamento dos produtos agrícolas e a obtenção dos produtos manufacturados.
   A partir do século X IX, vieram, do Este africano, os comerciantes árabes que se instalaram-me nesta região. Dedicaram-se ao cultivo do arroz, milho, algodão e ao tráfico de escravos.
   Em 1877, na sua viagem através da África, passou por aqui o famoso jornalista e explorador americano de origem inglese, Henri Norton Stanley. Pouco depois começou a colonização belga. As autoridades belgas declaram uma guerra total contra os traficantes de escravos que durou até 1 894.
   Em 1897 chegaram os primeiros missionários que se ficaram em Kisangani. Este centro foi o primeiro a ser evangelizado e em 1902, missionários fixaram residência aqui e fundaram a paróquia de Yanonge, dedicada ao Sagrado Coração de Jesus.
   Nos decénios seguintes, a presença dos missionários atraiu muitos comerciantes europeus, entre os quais muitos portugueses. Eles deixaram uma capelinha a nossa Senhora de Fátima.
   Nos anos 40 do século passado, Yanonge conheceu um grande desenvolvimento. Foi então que se construíram a missão propriamente dita: os conventos dos missionários e das missionárias, as escolas primária e secundária, uma escola com internato para as raparigas e um hospital. Além disso foram construídas casas para os professores e enfermeiros que vinham de longe.  
   Por seu lado os comerciantes construíram casas para viverem e armazéns. Houve um grande investimento de sociedades internacionais. Foi construída uma grande refinaria de açúcar. Mas o grande investimento foi na produção de borracha. Plantaram-se dezenas de km quadrados de árvores-da-borracha. Havia várias fábricas para tratamento e exportação destes produtos.
  Quando chegou a independência, em 1960, Yanonge era quase uma pequena cidade rica e próspera. Tinha um porto fluvial e era servida por boas estradas. As pessoas tinham um elevado nível de vida.
   Em 1964, com a rebelião Simba, os missionários foram assassinados, os comerciantes dispersaram-se e Yanonge foi esquecida. As indústrias ainda resistiram alguns anos, mas devido à situação catastrófica do país acabaram por fechar.
   Hoje, 50 anos depois da independência do país, Yanonge é uma pequena aldeia isolada. Não há estradas, o porto fluvial foi destruído e as grandes construções estão em ruínas.
   Foi neste local que trabalhei três anos. Foi um trabalho bonito, no meio de gente pobre, mas acolhedora e simpática. Na hora da partida deixo parte do meu coração no meio deste povo. Eu parto, mas continuo a partilhar com eles a grande esperança de ver um dia Yanonge resplender da grandeza passada. Para isso só precisamos de um país bem organizado onde reine a paz e a justiça.

Yanonge, 28 de Outubro de 2010