quinta-feira, 8 de março de 2012

As mães da África

A visita da Irmã Ilda a Maboma.

A Irmã Ilda é a última missionária comboniana chegada ao Congo. A semana passada esteve em Maboma. Hoje trouxe-a de volta a Isiro (150 km de Maboma) onde ela estuda a língua e cultura locais.
A Irmã Ilda é portuguesa, natural de Lamego, no Norte de Portugal. È de estatura pequena, ar reservado que esconde um temperamento vivo. É muito activa, quase irrequieta, corajosa e destemida, como uma missionária de Comboni.
Ela encontrou-me com um programa cerrado de visita às capelas. Pedi-lhe desculpa e disse que teria que ficar sozinha em casa, mas que todas as tardes eu voltaria. Ela perguntou-me, receosa de ouvir uma resposta negativa, se não podia acompanhar-me. Disse que a levaria com muito gosto, mas alertei-a para as dificuldades duma viagem de mota naquelas estradas. Ela sorriu e respondeu, alegre como uma criança que obtém o seu primeiro diploma: “Olhe que eu sou uma missionara comboniana!”
E de facto viria a revelar-se uma grande missionária!
Quando chegávamos a uma aldeia, as pessoas cumprimentavam-me, mas as senhoras e crianças eram aglomeravam-se à vota da irmã, como que atraída pelo seu amor maternal.
O mais espantoso, quase emocionante, era vê-la no meio dos pigmeus!
As senhoras e as crianças precipitavam-se literalmente sobre ela, rodeavam-na de todos os lados, tocavam-na, as crianças agarravam-se a ela como a uma mãe. A irmã falava pouco, gesticulava muito, abraçava as senhoras, acariciava as crianças e todos riam duma felicidade natural. A sua presença transformava completamente o ambiente da aldeia por onde passava. As jovens agarram os braços da irmã e, desenham, usando uma tinta especial, formas geométricas, como elas mesmas usavam.
A Irmã estava no seu mundo. Respondia a todos com sorrisos, as vezes gargalhadas, distribuía abraços, beijava alguns bebés que ela arrancava dos braços das mães.
Era a primeira visita e ela já tinha conquistado o coração daquela gente. É como se, de repente, tivessem descoberto uma mãe. Ou era como se uma mãe que regressasse duma longa viagem reencontrava os filhos.
Enfim, a irmã Ilda era uma autêntica mãe dos africanos.
Lembrei-me de S. Daniel Comboni, fundador dos Combonianos e Combonianas. O nome original do instituto feminino era “Missionarias, Mães da África”. O grande santo atreveu-se a dizer, numa altura em que a mulher ainda nao contava na igreja, que “uma missionária no centro da África fazia mais do que 5 missionários!”
Bastava observar a Irmã Ilda o seu “trabalho”, as atitudes, as reacções, a sua maneira de ser missionária para razão a Comboni.

A irmã Ilda tinha, porém alguns medos.
O primeiro e maior, que ela não disfarça, eram um horror confesso às cobras! Mesmo que ainda não as tenha visto!
Outro medo que ela tentava esconder, era o pavor de andar de mota. Para mais, era a primeira vez que ela utiliza este meio de transporte. E nesta primeira experiencia ela percorreu cerca de 500 km!
Nas nossas longas andanças eu fazia de tudo para tornar a viagem o mais agradável possível. Isso não impedia que, nos troços mais difíceis, a pobre irmã agarrava-se com todas as forças, encolhia-se, ficava imóvel e até sustinha a respiração. Passado o perigo, dava um grande suspiro aliviada e dizia: “Desta já nos livrámos!”
Outras vezes gritava horrorizada: “vamos passar por ali!?” Quando rolávamos nos raros troços de estrada em boas condições, ela suspirava: “Se toda a estrada fosse assim!”
Outro medo mais declarado, mas que ela exagera, é o receio de não aprender bem a língua. Ela sabe que para “ser mãe dos africanos” é indispensável falar a língua dos filhos.
A pobre queixa-se que “nunca gostou de estudar”, que “já não tem memória”, que “é uma língua muito difícil”. Claro que ela exagera, ainda que o Comboni tenha dito que “um missionário da África deve começar muito cedo, nunca depois dos 30 anos, a aprender a língua e os costumes desta gente.” Ora a nossa Irmã Ilda já vai avançada na casa dos quarenta.
Convenhamos que não é a idade ideal para estudar uma língua completamente diferente da nossa, mas ela tem coragem e força necessárias. Falta-lhe, sem dúvida, um pouco de paciência. Mas cada dia que passa, cada palavra aprendida é uma vitória.
Bem vida à Missão, estimada Irmã Ilda. Nós os “velhos” missionários estamos contigo!

Isiro, 8 de Março de 2012

Uma morte antecipada

História da morte de um animal que é uma parábola da vida real.

A Maboma temos um pequeno rebanho de cabras e ovelhas que são de uma grande ajuda para a nossa comunidade.
Uma noite, acordei com os berros desesperados de todo o curral. Fui ver e descobri que uma cabra tinha tido uma cria e que esta estava entalada entre duas tábuas.
Quando me aproximei para a libertar, fui invadido pelas formigas vermelhas que, subindo pelas pernas, me invadiram completamente e picavam como abelhas. Com o foco vi que a cria estava completamente coberta de formigas que a devoravam. Ela debatia-se, mas não se podia libertar. Afastei-me, para me defender, mas a cria corria perigo de morte. Era urgente tirá-la dali, mas, se a fosse socorrer outras formigas me invadiriam.
Tentei outras vezes, mas nada! Era necessária uma alavanca para separar as tábuas e libertar o pequeno animal. Esqueci as mordidas de centenas de formigas e, numa tentativa mais demorada e decidida, consegui libertar o animal. Coloquei-a longe das formigas, onde a mãe veio em seu socorro e precipitei-me para o duche. Tomar um banho era a única maneira de se libertar das formigas.
Depois de ter mudado de roupa voltei a ver o estado do animal - as formigas não a tinham deixado. O seu pequeno corpo era um autêntico formigueiro. Como tirá-las?
Meti a cabritinha dentro de um balde de água. Foi uma boa operação, as formigas vinham ao de cima e eu tirava-as para fora, mas a cabritinha começou a tremer de frio. Lembrei-me que tínhamos um termos de água quente para o café da manhã. Deitei a água quente no balde. Dento da água tépida, o animal restava calmo, só com a cabecinha de fora, como se tivesse voltado ao ventre da mãe. Alguns bons minutos depois já não há formigas.
Enxuguei a, tirei ainda as formigas da sua boca e finalmente meti-a ao lado da mãe que acolheu agradecida. Voltei para a cama. Toda a operação demorou mais de uma hora, mas tinha salvado um animal!
No dia seguinte, antes de sair para visitar uma capela, controlei e vi que estava bem arrebitada ao lado da mãe. Notei, porém, que não mamava. Falei com o rapaz encarregado dos animais, disse-lhe o que se tinha passado e recomendei-lhe que fosse cuidadoso. Parti descansado.
À tarde quando voltei, o moço disse-me que a cria estava a morrer. Fui ver, mas já não havia nada a fazer. O pequeno animal morreu nas minhas mãos. Tinha vivido menos de 24 horas!
Não consegui esconder o meu descontentamento. O rapaz respondeu-me com a maior calma do mundo: “Porque se zanga? Chegou a hora da cabritinha morrer, não podíamos fazer nada!”
Fiquei chocado com a resposta, mas para quê responder?
Com esta mentalidade fatalista não admira que as crianças morram às dezenas, as pequenas doenças não curadas se tornem em doenças mortais e que a morte, quase quotidiana, seja uma coisa normal. De facto, aqui, a maior parte das mortes são “mortes antecipadas”, não querida por Deus e fruto da negligência humana.
O grande desafio dos missionários é ensinar a esta gente a “agarra-se à vida” a esforçar-se por “viver bem” mesmo num ambiente pobre.
È preciso proclamar bem alto que a maior glória de Deus é o homem vivente.

Maboma, Fevereiro de 2012

A senhora Helena

A história exemplar de uma cristã verdadeira.

Hoje em Bangane, uma aldeia a 20 km do centro da paróquia, e perguntei pela senhora Helena. Disseram-me que esta estava doente e que queria comungar.
Foi com enorme alegria e com um pouco de emoção que pude revê-la 15 anos depois. Ela ainda me reconheceu, pôs-se de pé com dificuldade e abraçou-me dizendo: “Ah meu querido filho! Bem-vindo!”
Há 15 anos, quando cá estive pela primeira vez, os missionários habitavam exactamente nesta aldeia, para dedicar-se mais intensamente ao trabalho com os pigmeus. Portanto éramos vizinhos.
Na altura ela era uma senhora já viúva, mas ainda cheia de força. Era muito simples, nunca tinha frequentado a escola, vivia pobremente na sua palhota com uma neta. Ela tinha uma fé profunda e verdadeira que transmitia a toda a aldeia.
Todos os dias, antes de ir trabalhar para o campo, vinha à missa. À tarde, quando regressava à casa, trazia-nos sempre alguma coisa, um ananás, mandioca, fruta, una cana-de-açúcar, etc.
Um dia via-a um pouco triste e deprimida. Sentei-me, falamos e ela explicou-me a razão do seu estado de espírito.
Os ladrões tinham arrombado a porta da sua palhota e tinham roubado tudo, a panela, os dois pratos, o bidão da água e, sobretudo, a enxada e a catana com que ela trabalhava o campo.
No fim da nossa conversa disse-lhe para não guardar ódio nem rancor contra aquela gente, pois eram, certamente, jovens sem educação e não sabiam o mal que tinham feito.
Ela olhou-me fixamente nos olhos e disse com segurança: “Senhor padre, eu nunca deixarei que a maldade daquela gente entre dento do meu coração! Eles arrombaram a minha casa, mas nunca entrarão com violência dentro da minha vida! Eu peço a Deus por eles, são como meus filhos que se desviaram do caminho.”
Ainda hoje a senhora Helena espalha a mesma tranquilidade e serenidade interior fruto de um grande sentido da presença de Deus na sua vida. Até o seu rosto, gasto pelos anos, mantém-se transparente e límpido imune à doença, à dor e ao sofrimento quotidianos.
Ela nunca se queixa, não reclama nada. Diz somente que está à espera que o “Senhor a venha buscar, quando Ele quiser. Ela está preparada.”
Apesar do sofrimento da vida miserável onde falta de tudo, a senhora Helena não tem pressa.
Esta senhora é o melhor fruto do trabalho dos missionários. È o exemplo claro da força do Evangelho vivido no dia-a-dia. A sua vida é aquela boa terra que acolheu a Palavra do Evangelho e produz muito fruto.
Muito obrigado senhora Helena pelo exemplo de vida!

Maboma, Janeiro de 2012

Um acidente de caça

Uma história das crianças pigmeias

Maboma é uma missão na terra dos pigmeus. Foi para evangelizar os pigmeus que os missionários chegaram aqui, há quase 30 anos.
È por isso que a nossa casa é um centro por onde eles passam para cumprimentar, falar ou simplesmente passar um pouco de tempo connosco.
O mais interessante são as crianças, numerosas, sempre irrequietas e ruidosas. Elas vêm frequentemente pedir a bola para jogar, tirarem água do poço ou simplesmente para brincarem alegres e despreocupadas.
Estas crianças são o exemplo da liberdade e do desprendimento dos pigmeus. Vestem uma tira de pano entre as pernas, preso à cintura com uma casca de árvore. Vivem livres e felizes, chegam e partem como os pardais.
A sua maior alegria é apanharem (caçarem) as galinhas ou coelhos rebeldes que fogem das suas prisões.
Antes de iniciar a “caça” dão gritos de alegria e repartem-se as tarefas. Uns vão por um lado outros por outro. Depois lançam-se, ágeis como o vento ao som de gritos de encorajamento. Pouco depois ouve-se o desespero dos animais presos, bem seguros nas mãos delicadas, mas seguras das crianças. È o sinal da tarefa cumprida.
Com os coelhos a técnica é a mesma, mas é preciso um pouco mais de tempo e perseverança. Mas não há coelho que escape destes pequenos caçadores naturais.
Exactamente nestes dias, dei, a um destes grupos, o trabalho de apanharem algumas galinha e, sobretudo os coelhos que tinham escapado e circulavam livremente pelo jardim.
Do meu escritório, onde trabalhava e atendia as pessoas, seguia o evoluir da caça de acordo com os gritos alegres das crianças e, sobretudo, com os sinais de desespero dos animais apanhados.
A um certo momento não ouvia mais as crianças. Preocupado, com um silêncio estranho, fui averiguar o que se passava. Não fosse algum dos pequenos ter caído ou m esmo se magoado.
Encontrei todas as crianças sentadas à sombra, silenciosas e tristes. Até o pequeno cão que os tinha acompanhado naquele dia, que estava atado com uma corda da floresta, participava da do desânimo de todo o grupo.
Perguntei se alguém estava magoado, disseram que não. Então o que se passava?
O mais corajoso contou. Estávamos a perseguir o último coelho, mas ele se meteu debaixo da lenha. O nosso cão foi mais rápido que nós, perseguiu o coelho e apanhou com os dentes! Eles mostraram-me o pequeno coelho já meio comido que arrancaram das garras do cão.
Falamos um pouco e ficamos de acordo, para a próxima vez é preciso atar o cão antes de começar a caça. Um pouco mais animados, mas ainda triste por este acidente voltaram para casa silenciosa.

Maboma, Janeiro de 2012