sábado, 15 de outubro de 2011

Missão à sombra de cruz

Missionários Combonianos na RD Congo: Missão à sombra da cruz

Por: P.e MANUEL FIDELINO JARDIM, Missionário comboniano no Congo


(Artigo publicado na revista “Além-mar” de Junho 2011. Cf. http://www.alem-mar.org/)

«As obras de Deus nascem e crescem à sombra da Cruz», como disse S. Daniel Comboni e experimentam os Missionários Combonianos na República Democrática do Congo. Constituem uma família de oito dezenas de missionários, sacerdotes e irmãos, divididos em dezoito comunidades e presentes em oito dioceses. Apesar das dificuldades por que passa o país, cresceram e deitaram raízes: hoje os combonianos naturais do Congo são mais de meia centena, alguns a trabalhar noutras partes do mundo.

A história da Província Comboniana do Congo é uma história de gente solidária, que enriquece a tradição missionária da Igreja congolesa e merece ser aqui contada.
 
Um grande país

 O Evangelho chegou ao reino do Congo, actual Baixo Congo e Norte de Angola, em 1482, quando o navegador português Diogo Cão descobriu a foz do rio Congo. Foi o início de três séculos e meio de intenso trabalho missionário que terminou em 1835, com o decreto do Governo português que eliminava todas as ordens religiosas masculinas e a consequente confiscação e venda dos seus bens. Deste período, resta a memória do bispo D. Afonso, filho do rei congolês. Dom Afonso (1500-1546) foi ordenado sacerdote em Lisboa e, em 1521, consagrado bispo auxiliar do bispo do Funchal (diocese fundada em 1514), com residência em São Salvador.

A segunda etapa da evangelização do Congo começou em 1880, quando os Missionários Espiritanos fundaram a missão de Boma, no Sul do país.

O Congo começou a existir como entidade política em 1876 com a fundação, por Leopoldo II, rei dos Belgas, da Associação Internacional do Congo, para explorar e estudar as grandes regiões que o explorador e jornalista britânico Henry Stanley tinha acabado de explorar durante a sua bem-sucedida travessia da África (1864-1876). Em 1885 a Conferência de Berlim, reconheceu o rei Leopoldo II como proprietário do país. Em 1908, o Congo tornou-se colónia belga e obteve a independência em 30 de Junho 1960.

A jovem democracia foi gravemente abalada por divisões e guerras que levaram, em 1965, ao golpe de Estado e à ditadura do general Joseph Mobutu. Trinta e dois anos depois, em Maio de 1997, Laurent Kabila proclamou-se presidente. Seguiram-se dez anos de guerras que provocaram a morte de milhões de pessoas. Finalmente, em 2006, o país elegeu um parlamento e um presidente actualmente em exercício. Para este ano, em Novembro próximo, estão previstas novas eleições.

O sonho de Daniel Comboni

 O vicariato da África Central, confiado ao bispo Daniel Comboni, compreendia parte dos actuais Congo e Uganda. Em 1878, Comboni escreveu ao rei Leopoldo II: «No próximo ano pretendo fundar uma missão no lago Alberto [no Congo] e, no ano seguinte, outra no lago Vitória [no Uganda].» Este sonho só seria concretizado em 1952, ano em que as Irmãs Missionárias Combonianas abriram uma missão em Nduye, na diocese de Wamba. Os Missionários Combonianos chegaram em Dezembro de 1963 e fixaram-se em Rungu e Ndedu, na diocese de Isiro.

No ano seguinte, começou a «rebelião dos simba» (leão) que, em poucos meses, ocupou um quarto do território congolês. Foi a pior das rebeliões que o país conheceu. Mais de uma centena de missionários, milhares de catequistas e centenas de milhares de pessoas foram massacradas.

Do grupo de oito combonianos chegados ao Congo, quatro foram assassinados nessa rebelião. Outro, o Ir. Carlos Mosca, sobreviveu milagrosamente. Foi fuzilado e deitado ao rio com os mortos. Quando recuperou os sentidos, estava gravemente ferido e conseguiu esconder-se na floresta e receber ajuda.

A presença comboniana no Congo começava, assim, à sombra da Cruz, prova evidente de que era uma obra querida por Deus, pois «todas as obra de Deus nascem aos pés da cruz de Jesus». Foi no primeiro dia de Dezembro deste mesmo ano de 1964 que uma religiosa congolesa, a Irmã Anuarite, foi assassinada no Nordeste do país. Viria a ser beatificada em 1985.
 
O trabalho missionário
 
Os primeiros missionários combonianos que chegaram ao Congo dedicavam-se exclusivamente ao trabalho pastoral nas paróquias. Estas foram fundadas pelos Combonianos; algumas eram de antiga fundação, mas tinham sido abandonadas e foram confiadas novamente aos combonianos.

A paróquia de Bibwa, na periferia de Kinshasa, é a última paróquia fundada pelos Combonianos. O cardeal de Kinshasa confiou aos Combonianos uma vasta zona arenosa onde se aglomeravam desordenadamente milhares de pessoas que procuravam, na grande capital, uma vida melhor. Graças ao trabalho abnegado do missionário comboniano português P.e António Aparício Cardoso, um dos fundadores, foram construídas a casa dos missionários, uma bonita igreja, escolas, salas para encontros, escavaram-se poços e foram plantadas árvores. Em poucos anos, um deserto de areia transformou-se numa pequena cidade organizada à volta de uma comunidade cristã cheia de vida.

Outro estilo de missão é exemplificado pela paróquia de Duru, no Nordeste, a 30 km do Sudão. Foi fundada em 1932 e abandonada nos anos 60. Posteriormente, em 1975, foi entregue aos Combonianos. Esta missão, como outras do Nordeste do país, tem uma história trágica. Durante a guerra foi várias vezes saqueada e os missionários foram expulsos. Mas voltaram sempre. Em 2008, os rebeldes ugandeses do Exército da Resistência do Senhor (LRA, na sigla inglesa), atacaram a missão, saquearam-na e incendiaram-na. Dois missionários foram presos, maltratados e depois libertados. Um terceiro, o P.e Mário Benedetti (ver «Gente Solidária», Além-Mar, Fevereiro de 2010), conseguiu fugir para o Sudão, onde acompanha os cristãos congoleses ali refugiados.
 
A promoção humana

A actividade missionária visa «a pessoa toda». O anúncio directo do Evangelho vai acompanhado pela promoção humana, sobretudo a educação e a saúde. Neste campo, tem particular importância o trabalho dos Irmãos Missionários Combonianos. Eles tiveram, desde o princípio, um papel fundamental na obra de promoção humana. A conhecida escola técnica de Rungu foi, durante anos, dirigida pelos irmãos. Outras escolas beneficiaram largamente da intervenção dos missionários, seja na sua reabilitação seja na ajuda directa aos professores. Noutros casos, fundaram-se escolas nas áreas mais isoladas.

Fazendo memória desta presença missionária protagonizada pelos irmãos, impõe-se que citemos alguns nomes de irmãos que se distinguiram na sua acção. Os irmãos Tarcisio Calligaro e Santo Dal Monte, falecidos recentemente, foram pessoas extraordinárias quer pelas suas capacidades técnicas quer pela riqueza de carácter. O Ir. Tarcisio foi o grande responsável pela garagem comboniana na cidade de Isiro. O Ir. Santo foi um grande construtor de missões, conventos, dispensários, escolas, capelas e sobretudo igrejas e mesmo catedrais. O Ir. António Piasini, que trabalha há trinta anos na diocese de Bondo, uma das mais isoladas e abandonadas do Congo, é um grande reparador de estradas e construtor de pontes. A sua obra-prima foi a construção de uma ponte de 150 metros sobre o rio Api, que divide a diocese de Bondo em duas partes. A esta lista, temos de acrescentar o nome do Irmão missionário comboniano português Joaquim Gaspar Cebola, falecido em 16 de Setembro de 1979, na missão de Dungu, com apenas 30 anos de idade e que foi companheiro do Ir. Tarcisio nos trabalhos da garagem e procuradoria de Isiro.

A Saúde

 A grande «obra comboniana» no Nordeste do Congo é o hospital Anoalite, em Mungbere, na diocese de Wamba. É um grande e moderno centro hospitalar, onde trabalham quatro médicos e dezenas de enfermeiros congoleses. O médico e missionário comboniano P.e João Maria Corbetta é, desde há 15 anos, o responsável por este grande projecto. O hospital recebe frequentemente a visita de médicos especialistas da Itália, que fazem todo o tipo de operações. Durante os anos de guerra, o hospital foi várias vezes saqueado; mas, graças à tenacidade dos missionários e à ajuda generosa dos benfeitores, foi sempre reanimado com êxito.

Sempre na área da saúde, os Missionários Combonianos deram vida também a um pequeno hospital na localidade de Dondi e ao hospital de Duru, onde trabalhou o Irmão Hernán Romero, médico comboniano peruano; este hospital, porém, teve de ser abandonado depois que os rebeldes do LRA destruíram a missão.

Evangelização dos pigmeus

 Em 1984, dois missionários combonianos iniciaram uma comunidade em Bangane, na diocese de Wamba, com o intuito de estabelecerem uma presença missionária junto dos pigmeus. Os pigmeus são um povo simples e pacífico que vive da caça, da pesca e da colheita na rica floresta tropical. Apesar da sua grande liberdade e a da cultura própria, os pigmeus são muito dependentes das populações locais, que os menosprezam e exploram. O primeiro grande trabalho dos missionários foi ajudar os pigmeus a tomarem consciência da sua dignidade de pessoas livres e responsáveis. Por outro lado, foi necessário ajudar as populações locais a respeitarem os pigmeus como pessoas com os mesmos direitos e deveres. Em seguida, foi necessário ajudar os pigmeus a cultivarem os seus próprios campos, actividade fundamental para a sua sobrevivência, pois a caça e a pesca são cada vez mais raras.

Ao mesmo tempo, fundaram-se escolas para as crianças pigmeias. Hoje, há, em toda a diocese de Wamba, mais de cinco mil crianças pigmeias escolarizadas. Já há professores, enfermeiros e um estudante universitário vindos dos pigmeus. O grande apóstolo dos pigmeus é o P.e Franco Laudani, que desde há 25 anos dedica a vida à evangelização deste povo.
 
Animação missionária
 
A comunidade de Lemba, em Kinshasa, dedica-se exclusivamente à animação missionária. As principais actividades são a direcção da rádio Elikia (Esperança), propriedade da arquidiocese, a publicação da revista Afriquespoir e a editorial Afriquespoir, que já publicou mais de trinta livros.

Outras três comunidades funcionam como centros polivalentes onde coexiste a animação missionária, a promoção vocacional e um centro de espiritualidade comboniana. Especial atenção merece o centro polivalente Alfajiri (Aurora), em Kisangani, onde, além das actividades citadas, está previsto o funcionamento de uma biblioteca e um centro de consulta de Internet para professores e estudantes universitários.

Anunciar o Evangelho

Os desafios que se apresentam aos Combonianos e à Igreja do Congo são enormes.

O primeiro e mais urgente é o de anunciar o Evangelho no contexto actual do país. Estes 50 anos de independência resumem-se a cinco anos iniciais de democracia frágil e imatura que originou uma ditadura destruidora de trinta anos. Seguiram-se dez anos de uma catastrófica guerra africana e, finalmente, os últimos cinco anos, de democracia decepcionante. A guerra continua, a insegurança persiste, a miséria aumenta, o Estado está completamente ausente e as grandes esperanças postas nas eleições de 2006 foram completamente defraudadas. As pessoas estão cansadas, resignadas e sem forças para reagir a uma quaresma demasiado prolongada.

É urgente reanimar a esperança deste povo. Como os profetas do Antigo Testamento, os missionários devem ser os arautos corajosos de uma boa notícia — Deus não abandonou o seu povo! A esta longa via-sacra seguir-se-á a Páscoa. A presença dos missionários é a prova que este futuro existe e é bem real.

Trabalhar pela Reconciliação

Um segundo desafio foi proposto pelos dois sínodos dos bispos para a Igreja africana: formar uma Igreja Família de Deus e trabalhar para a reconciliação, a justiça e a paz.

Na verdade, depois de tantos anos de miséria, vive-se uma cultura do «salve-se quem puder» e do «desenrasque», o importante é sobreviver; acentuaram-se as diferenças e ressurgiu o tribalismo. É urgente recuperar o conceito, bem africano, da família alargada e solidária, que, nos momentos mais difíceis, se socorre mutuamente. A Igreja tem de ser este espaço onde as pessoas descobrem e vivem uma nova fraternidade que irmana todos os baptizados.

Além disso, esta grande nação precisa, para sobreviver com a sua identidade, de uma reconciliação geral, internamente, com a sua história e, internacionalmente, com todos os que causaram tanto sofrimento. Em seguida, é necessária uma justiça firme e imparcial para que o país chegue a experimentar aquela paz que é dom de Deus, mas é fruto de um esforço enorme de todos os congoleses.

Conclusão

 A história dos Combonianos no Congo começou com o martírio dos primeiros quatro missionários. Foi o início de uma via-sacra que demorou quase 50 anos. Este caminho foi semeado de perseguições e prisões de missionários.

Durante os anos de guerra, os missionários foram insultados, ameaçados e obrigados a deixar o país. As missões foram saqueadas, algumas destruídas.

Pior ainda foi testemunhar o grande sofrimento, as violências, as injustiças e a morte de milhares dos nossos melhores cristãos.

Deus, porém, nunca abandona os seus eleitos. A fé continua sólida e a esperança firme. Os frutos de tantas cruzes já são visíveis: nas nossas paróquias surgem líderes carismáticos embebidos do espírito evangélico, cresce uma sociedade faminta de reconciliação e de paz. A Igreja do Congo tornou-se mais forte e madura e dezenas de jovens congoleses tornaram-se missionários combonianos e servidores do Evangelho, em África e noutros continentes.




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